sábado, 19 de junho de 2010

Os sapatinhos vermelhos




"Era uma vez uma pobre órfã que não tinha sapatos. Essa criança guardava os
trapos que pudesse encontrar e, com o tempo, conseguiu costurar um par de sapatos
vermelhos. Eles eram grosseiros, mas ela os adorava. Eles faziam com que ela se
sentisse rica, apesar de ela passar seus dias procurando alimento nos bosques
espinhosos até muito depois de escurecer.

Um dia, porém, quando ela vinha caminhando com dificuldade pela estrada,
maltrapilha e com seus sapatos vermelhos, uma carruagem dourada parou ao seu
lado. Dentro dela, havia uma senhora de idade que lhe disse que ia levá-la para casa e tratá-la como se fosse sua própria filhinha. E assim lá foram elas para a casa da rica senhora, e o cabelo da menina foi lavado e penteado. Deram-lhe roupas de baixo de um branco puríssimo, um belo vestido de lã, meias brancas e reluzentes sapatos pretos. Quando a menina perguntou pelas roupas velhas, e em especial pelos sapatos vermelhos, a senhora disse que as roupas estavam tão imundas e os sapatos eram tão ridículos que ela os jogara no fogo, onde se reduziram a cinzas.

A menina ficou muito triste, pois, mesmo com toda a fortuna que a cercava, os
modestos sapatos vermelhos feitos por suas próprias mãos haviam lhe dado uma
felicidade imensa. Agora, ela era obrigada a ficar sentada quieta o tempo todo, a
caminhar sem saltitar e a não falar a não ser que falassem com ela, mas uma chama
secreta começou a arder no seu coração e ela continuou a suspirar pelos seus velhos
sapatos vermelhos mais do que por qualquer outra coisa.

Como a menina tinha idade suficiente para ser crismada no dia do sacramento,
a senhora levou-a a um velho sapateiro aleijado para que ele fizesse um par de
sapatos especiais para a ocasião. Na vitrina do sapateiro havia um par de lindíssimos sapatos vermelhos do melhor couro. Eles praticamente refulgiam. Pois, apesar de sapatos vermelhos serem escandalosos para se ir à igreja, a menina, que só sabia decidir com seu coração faminto, escolheu os sapatos vermelhos. A vista da velha senhora era tão fraca que ela, sem perceber a cor dos sapatos, pagou por eles. O velho sapateiro piscou para a menina e embrulhou os sapatos.

No dia seguinte, os membros da congregação ficaram alvoroçados com os
sapatos da menina. Os sapatos vermelhos brilhavam como maçãs polidas, como
corações, como ameixas tingidas de vermelho. Todos olhavam carrancudos. Até os
ícones na parede, até as estátuas não tiravam os olhos reprovadores dos sapatos. A
menina, no entanto, gostava cada vez mais deles. Por isso, quando o bispo começou a salmodiar, o coro a cantarolar, o órgão a soar, a menina não achou que nada disso
fosse mais belo que os seus sapatos vermelhos.

Antes do final do dia, a velha senhora já estava informada dos sapatos
vermelhos da sua protegida.
— Nunca, nunca mais use esses sapatos vermelhos! — ameaçou a velha. No
domingo seguinte, porém, a menina não conseguiu deixar de preferir os sapatos
vermelhos aos pretos, e ela e a velha senhora caminharam até a igreja como de
costume.

À porta do templo estava um velho soldado com o braço numa tipóia. Ele
usava uma jaqueta curta e tinha a barba ruiva. Ele fez uma mesura e pediu permissão para tirar o pó dos sapatos da menina. Ela estendeu o pé, e ele tamborilou na sola dos sapatos uma musiquinha compassada que lhe deu cócegas nas solas dos pés.
— Lembre-se de ficar para o baile — disse ele, sorrindo e piscando um olho
para ela.

Mais uma vez, todos lançaram olhares reprovadores para os sapatos vermelhos
da menina. Ela, no entanto, adorava tanto esses sapatos que brilhavam como o
carmim, como framboesas, como romãs, que não conseguia pensar em mais nada,
que mal prestou atenção no culto. Estava tão ocupada virando os pés para lá e para cá para admirar os sapatos que se esqueceu de cantar.
— Que belas sapatilhas! — exclamou o soldado ferido quando ela e a velha senhora saíam da igreja.

Essas palavras fizeram a menina dar alguns rodopios ali mesmo. No entanto, depois que seus pés começaram a se movimentar, eles não queriam mais parar; e ela atravessou dançando os canteiros e dobrou a esquina da igreja até dar a impressão de ter perdido totalmente o controle de si mesma. Ela dançou uma gavota, depois uma csárdás e saiu valsando pelos campos do outro lado da estrada.

O cocheiro da velha senhora saltou do seu banco e correu atrás da menina. Ele
a segurou e a trouxe de volta para a carruagem, mas os pés da menina, nos sapatos
vermelhos, continuavam a dançar no ar como se ainda estivessem no chão. A velha
senhora e o cocheiro começaram a puxar e a forçar, na tentativa de arrancar os
sapatos vermelhos dos pés da menina. Foi um horror. Só se viam chapéus caídos e
pernas que escoiceavam, mas afinal os pés da menina se acalmaram.

De volta à casa, a velha senhora enfiou os sapatos vermelhos no alto de uma
prateleira e avisou a menina para nunca mais calçá-los. No entanto, a menina não
conseguia deixar de olhar para eles e ansiar por eles. Para ela, eles eram o que havia de mais lindo no planeta.

Não muito tempo depois, o destino quis que a velha senhora caísse de cama e,
assim que os médicos saíram, a menina entrou sorrateira no quarto onde eram
guardados os sapatos vermelhos. Ela os contemplou lá no alto da prateleira. Seu
olhar tornou-se fixo e provocou nela um desejo tão forte que a menina tirou os
sapatos da prateleira e os calçou, na crença de que eles não lhe fariam mal algum. Só que, no instante em que eles tocaram seus calcanhares e seus dedos, ela foi dominada pelo impulso de dançar.

E saiu dançando porta afora e escada abaixo, primeiro uma gavota, depois uma
csárdás e em seguida giros arrojados de valsa em rápida sucessão. A menina estava
num momento de glória e não percebeu que enfrentava dificuldades até que teve
vontade de dançar para a esquerda e os sapatos insistiram em dançar para a direita.
Quando ela queria dançar em círculos, os sapatos teimavam em seguir em linha reta.

E, como eram os sapatos que comandavam a menina, em vez do contrário, eles a
fizeram dançar estrada abaixo, atravessar os campos enlameados e penetrar na
floresta soturna e sombria.

Ali, encostado numa árvore, estava o velho soldado de barba ruiva, com o
braço na tipóia e usando sua jaqueta curta.
— Puxa — disse ele —, que belas sapatilhas!

Apavorada, a menina tentou tirar os sapatos, mas por mais que puxasse, eles
continuavam firmes. Ela saltava primeiro num pé, depois no outro, para tentar tirá-los,mas o pé que estava no chão continuava dançando assim mesmo e o outro pé na
sua mão também fazia seu papel na dança.

E assim, ela dançava e dançava sem parar. Por sobre os montes mais altos e
pelos vales afora, na chuva, na neve e ao sol, ela dançava. Ela dançava na noite mais
escura, no amanhecer e continuava dançando também ao escurecer. Só que não era
uma dança agradável. Era terrível, e não havia descanso para a menina.
Ela entrou no adro de uma igreja e ali um espírito guardião não quis permitir
que ela entrasse.
— Você irá dançar com esses sapatos vermelhos — proclamou o espírito — até
que fique como uma alma penada, como um fantasma, até que sua pele pareça
suspensa dos ossos, até que não sobre nada de você a não ser entranhas dançando.

Você irá dançar de porta em porta por todas as aldeias e baterá três vezes a cada
porta. E, quando as pessoas espiarem quem é, verão que é você e temerão que seu
destino se abata sobre elas. Dancem, sapatos vermelhos. Vocês devem dançar.

A menina implorou misericórdia mas, antes que pudesse continuar a suplicar,
os sapatos vermelhos a levaram embora. Ela dançou por cima das urzes, através dos riachos, por cima de cercas-vivas, sem parar. Ainda dançava quando voltou à sua antiga casa e viu pessoas de luto. A velha senhora que a havia abrigado estava morta.
Mesmo assim, ela passou dançando. Dançava porque não podia deixar de dançar.

Totalmente exausta e apavorada, ela entrou dançando numa floresta onde morava o carrasco da cidade. E o machado na parede começou a tremer assim que pressentiu que ela se aproximava.
— Por favor! — implorou ela ao carrasco quando passou pela sua porta. — Por
favor, corte fora meus sapatos para me livrar desse destino horrível.

O carrasco cortou fora as tiras dos sapatos vermelhos com o machado, mas os
sapatos não se soltaram dos pés da menina. Ela se lamentou, então, dizendo que sua vida não valia mesmo nada e que ele deveria amputar-lhe os pés. Foi o que ele fez.

Com isso, os sapatos vermelhos com os pés neles continuaram dançando floresta
afora e morro acima até desaparecerem. A menina era, agora, uma pobre aleijada e
teve de descobrir um jeito de sobreviver no mundo trabalhando como criada. E nunca mais ansiou por sapatos vermelhos.


Texto do livro: Mulheres que correm com os lobos
Autora: Clarissa Pinkola Estés
Editora: Rocco

Nenhum comentário:

Postar um comentário